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Marcel Rizzo

Título e trabalho de 'manager' no Fortaleza credenciam Ceni a voo mais alto

Marcel Rizzo

10/11/2018 19h30

Ceni conseguiu primeiro título como técnico no Fortaleza (Crédito: Stephan Eilert/AGIF)

"O treinador quando começa a carreira já é burro, burro de começar". O 4 de abril de 2018 foi duro para Rogério Ceni, que ouviu parte dos torcedores do Fortaleza no estádio Castelão o chamar de burro ao tirar Léo Natel e colocar Alípio. Era a primeira partida da final do Campeonato Cearense e o Tricolor do Pici perdeu para o Ceará por 2 a 1 — o placar se repetiria quatro dias depois confirmando o título estadual para o maior rival do Fortaleza.

Mais de sete meses depois, com o título da Série B e o acesso para a Série A garantidos, Rogério Ceni não se transformou apenas em "inteligente". Sua dobradinha com o presidente Marcelo Paz fez do Fortaleza um clube que passou oito anos na Série C com estrutura amadora a outro que, ainda com deficiências, hoje tem campos para treinar, academia de nível bom, departamentos médico e fisiológico eficientes e departamento de futebol que soube administrar um orçamento ainda baixo para montar o "elenco ideal dentro das possibilidades". Há uma palavra que define bem a passagem de Ceni pelo Fortaleza: manager.

"Quando o Rogério Ceni chegou ele viu as coisas que estavam erradas e começou a mudar algumas delas. Por exemplo, até o gramado ele mandou trocar, do Pici, ele passou a treinar lá no CT de Maracanaú, que ninguém dava bola, começou a fechar a maioria dos treinos, o que eu acho positivo porque para com torcedor gritando no alambrado em todo treino, ele mudou a alimentação, pediu para a academia mudar de lugar, como um manager mesmo. Ele é um cara que domina amplamente ali", contou Fernando Graziani, editor de esportes do jornal "O Povo".

Sua chegada em novembro de 2017 surpreendeu. Não se imaginava que o Fortaleza teria "bala na agulha" para contratar Ceni, apesar de ele estar sem clube desde julho, quando foi demitido do São Paulo. O ex-goleiro, para muitos o maior jogador da história do time paulista, saiu com apenas sete meses de seu primeiro trabalho como treinador. Para ele, o Fortaleza seria um recomeço, e após uma visita à cidade seu amigo e ex-companheiro de clube Bosco, então preparador de goleiros do Fortaleza, o apresentou à direção do clube. O "namoro" começou e terminou em um acordo que ia além de clube e técnico do futebol. Ceni seria a marca do Fortaleza no ano do centenário.

Seu salário, R$ 150 mil, alto para os padrões do Fortaleza mas baixo se comparado com que Ceni poderia receber de times da Série A ou de fora do Brasil, seria incrementado com ações de marketing. Patrocinadores seriam fechados e os valores repartidos entre o clube e o treinador. Mas aqueles que, antes do acerto, apostavam que não daria certo apontavam para outra questão que não a financeira: a estrutura do Fortaleza era precária e assustaria o exigente Ceni.

Provavelmente ele ficou assustado ao conhecer estrutura e departamentos, mas não se acanhou. Ceni recebeu carta branca e começou a pedir mudanças. Uma delas foi a construção de um novo campo de treino na sede principal do clube, no Pici. A custo de pouco mais de R$ 65 mil o gramado lembra bastante o do Castelão, onde o Fortaleza manda a maioria de seus jogos. A nova academia, com equipamentos novos, custou R$ 130 mil, e hoje os atletas não precisam mais ir a academias particulares para fazer trabalhos pós-jogo, por exemplo.

A 12 km do Pici fica o centro de treinamento Ribamar Bezerra, na cidade vizinha de Maracanaú, que até sua chegada era usado principalmente pela base pela distância do centro — alguns profissionais não gostavam de se deslocar até lá (no horário de pico fica um trânsito de dar inveja a São Paulo nas proximidades). Rogério pediu que houvesse melhorias no local, em campos e vestiários, e alguns treinos da equipe hoje são lá, principalmente quando ele quer maior privacidade. No Pici, como é sede do clube, alguns sócios podiam ver os treinamentos e sempre havia aquele mais exaltado.

Não parou aí. Rogério mexeu na alimentação dos atletas e determinou que eles jantassem todos os dias no clube após os treinos. Antes havia as refeições, mas só comia por ali quem quisesse, o que normalmente ocorria apenas com os mais jovens que usavam o jantar oferecido para economizar. Em abril, quando o time fracassou no Estadual, alguns dirigentes e torcedores passaram a questionar se esses gastos extras, como contratação de mais cozinheiros, seriam realmente necessários. Foi o momento que Marcelo Paz chamou a responsabilidade e bancou Rogério. Deu certo.

Fora e dentro do campo

Em 2017, Eduardo Girão (eleito senador na eleição de 2018) presidia o Fortaleza e injetou R$ 6 milhões para o pagamento de salários e bichos atrasados. O time foi da C para a B e Marcelo Paz assumiu. Se Girão, dono de uma rede de lojas de departamento no Ceará, pouco entendia de futebol, Paz é do ramo, já trabalhou como agente de atletas, e pretendia profissionalizar o clube antes mesmo de contratar Ceni. O ex-goleiro acabou sendo fundamental no projeto porque a profissionalização passava por aumento de receita e o foco era melhorar o plano de sócio-torcedor. Em janeiro de 2018 o Fortaleza tinha seis mil associados, número que já passou dos 25 mil. São R$ 600 mil mensais somente com isso, três vezes mais do que a Caixa paga para patrocinar a camisa.

Para assumir Ceni pediu carta-branca também na montagem do elenco. E quando se diz montagem é o que de fato foi feito, já que ele chegou com apenas dois jogadores sob contrato, o goleiro Marcelo Boeck e o volante Anderson Uchôa. A estratégia foi arriscada: montar um grupo mais enxuto, que não chegaria a 30 atletas, para poder sobrar dinheiro para adquirir profissionais com mais qualidade (que receberiam salários maiores). Rogério não se fez de rogado em ligar para atletas que se interessava para apresentar o projeto (parte financeira ficava a cargo da direção).

Gustavo, o Gustagol, fechou em dezembro. Ele pertence ao Corinthians, mas em 2017 esteve no Goiás e se imaginava que poderia ter mercado em clube que da Série A. Topou o projeto do Fortaleza após contato com Ceni e é o artilheiro do time no ano, com 28 gols. Em fevereiro, outra ligação de Rogério e uma contratação inesperada: Osvaldo, 30 na época, que jogou com o técnico no São Paulo, aceitou voltar ao Fortaleza depois de dez anos. Mesmo fechado a partir de maio com um time da Tailândia, o Buriran United, ele topou o proposta para ajudar em um elenco que era jovem e que precisava de bons conselhos.

Em campo, Ceni usou o Estadual, entre janeiro e abril, para testar opções e formações. Teve o 4-4-2, o 4-5-1, o 4-2-3-1 e até o 3-5-2. Hoje, o acesso e o título chegaram com uma linha de quatro atrás, mas com um setor ofensivo que alterna o 4-2-3-1 e o 4-5-1. Gustavo é a referência no ataque, com dois atletas rápidos abertos (Marcinho e Marlon). O time preza a posse de bola, e sem ela tem uma transição rápida. Ceni, podendo montar seu elenco, pôde escolher atletas que se encaixaram no esquema tático que pensou ser o ideal para a Série B.

No meio do caminho perdeu atletas importantes, como Edinho e Osvaldo, mas chegaram outros, como Marcinho e Nenê Bonilha. O medo de que um elenco enxuto prejudicasse em um torneio longo como a Segunda Divisão não se justificou porque foi possível repor com qualidade — nos bastidores do clube dizem que foi muito mais fácil contratar nos meses seguintes à Série B, com o time embalado. Muitos queriam trabalhar com Ceni.

O Fortaleza quer que Ceni fique pra 2019 e, segundo informações do jornal O Povo, a oferta seria de dois anos, com salário de até R$ 250 mil e novamente carta branca para contratar e gerenciar o que achar necessário no departamento de futebol. Em 2019, com o contrato de TV, o Fortaleza pode ter algo como R$ 60 milhões para investir, valor impensável um ano atrás na Série C. Ceni, porém, deve esperar um pouco e analisar propostas. O certo é que a parceria fez o Fortaleza renascer e Ceni mostrar que tem tudo para ser um dos bons técnicos do país, além de ser a bola da vez do mercado em 2019.

Sobre o Autor

Marcel Rizzo - Formado em jornalismo em 2000 pela PUC Campinas, passou pelas redações do Lance!, Globoesporte.com, Jornal da Tarde, Portal iG e Folha de S. Paulo, no qual editou a coluna Painel FC. Cobriu Copas do Mundo, Olimpíada e dezenas de outros eventos esportivos.

Sobre o Blog

Notícias dos bastidores do esporte, mas também perfis, entrevistas e personagens com histórias a contar.